quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Meu caro António Mora


"Meu caro António Mora, disse, Prosérpina quer-me no seu reino, é tempo de partir, é tempo de deixar este teatro de imagens a que chamamos a nossa vida, se soubesse as coisas que vi com os óculos da alma, vi os contrafortes de Oríon, lá em cima no espaço infinito, caminhei com estes pés terrenos sobre o Cruzeiro do Sul, atravessei noites infinitas como um cometa sintilante, os espaços interestelares d imaginação, a volúpia e o medo, e fui homem, mulher, velho, rapariguinha, fui a multidão dos grandes boulevards das capitais do Ocidente, fui o plácido Buda do Oriente ao qual invejamos a calma e a sabedoria, fui eu próprio e os outros, todos os outros que podia ser, conheci honras e desonras, entusiasmos e desânimos, atravessei rios e inacessíveis montanhas, guardei plácidos rebanhos e recebi na cabeça o sol e a chuva, fui fêmea em calor, fui o gato que brinca na rua, fui sol e lua, e tudo porque a vida não basta. Mas agora basta, meu caro António Mora, viver a minha vida foi viver mil vidas, estou cansado, a minha vela gastou-se, faça-me um favor, dê-me os meus óculos."



Os últimos Três Dias de Fernando Pessoa, um delírio, Antonio Tabucchi