quarta-feira, 25 de novembro de 2009

"A Morta"


Isto aconteceu.
A Morta ouviu dar a última badalada da meia-noite, ergueu os braços, e levantou a tampa do caixão. Desceu devagarinho, circunvagou em redor os olhos de pupilas sem luz; os outros mortos, bem mortos, dormiam pesadamente. Puxou para si a porta do jazigo que dava para a noite. O vestido branco manchou o negrume das sombras.

(...)


Florbela Espanca, Máscaras do Destino, "A Morta"
(Um excerto de um conto líricamente cemiterial, e sem dúvida um dos melhores que já escreveu a pálida Florbela Espanca.)

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Poesia de ventos e de ciprestes


"De tarde viera alguém com flores - lírios,
jacintos, narcisos, despedidas - e a porta ficara
aberta desde então. Agora as traças ciciavam

lá fora numa alegria turva em torno de uma
lâmpada; e, sobre o banco do alpêndre, jazia um
livro aberto na mesma página fazia quase um dia.

Batia-me nos pulsos um vida vencida; e, mesmo
que a terra apenas aguardasse o fulgor da manhã
para chamar pelo teu corpo, tive a certeza de que
era sobre o meu que a noite eternamente se abatia."



Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

domingo, 1 de novembro de 2009

...

é para ti que esta noite escrevo o fogo e o exílio (...)

é para ti que esta noite escrevo o fogo e o exílio
abrindo um círculo onde a memória cresce
é para ti: porque
sei que a tua loucura engoliu o alvor do meu corpo
e conheci a noite e a tortura melancólica dos cegos
que o teu incêndio queimou as minhas mãos
os meus cabelos
as tuas lâminas deceparam-me os versos
e há ossos no lugar de frutos
- mas perdoo-te e perdoo-me.

o canto solar das manhãs que tecia em torno da tua
nudez silenciou-se no interior do teu olhar vasado,
da violência abrupta dos dias
da aguda omnipresença da morte nestes quartos
(naufragados no odor de lírios, comprimidos, salina,
copos quebrados, cigarros)

mas os braços cansaram-se de lutar contra as
marés e os navios e as sereias e os corvos
e deixei-me na borda insidiosa do meu medo: de te
perder para os poços, para os rios caudelosos,
para os abismos, (sobretudo para os poços)
- receava que esquecesses o sol e os pomares
e o iridiscente lume dos poentes que juntos conhecemos
e pusesses o o corpo a embalar num sarcófago de flores

eis que nesta noite de novembro não faço mais que
beber o leite, o sangue derramado da nossa tragédia
e o mundo engole-nos outra vez tão lentamente, amor,
- pergunto-me se resguardas nos interstícios do peito
esse diário de cinzas (que é a história e o tempo que decorre
desde o dia em que os olhos se bateram frente a frente
contra a eternidade até ao dia em que todos os muros
se puseram a ser duros e intransponíveis entre nós)

pergunto-me se levas ainda o mesmo o coração a tremer
com os pássaros, inóspito lugar onde me acolheste,
órgão nunca seco ou lapidado que bebi com os dentes
e toda a ternura da sede; pergunto-me pelo coração
que ofereces agora gentilmente aos precipícios
- os poços que não pudeste evitar e que eu não soube
fechar antes da noite e do vento